ANTICRISTO (ANTICHRIST – Lars Von Trier/2009)



“Esta é a carne da minha carne e osso dos meus ossos. Ela será chamada de mulher, porque Deus a tirou do homem” – GÊNESIS.

Existem referências em quantidade suficiente em “Anticristo” para torna-lo difícil de ser resumido, quanto mais criticado em seus devidos pormenores. Mas é uma tarefa que não encontra atalhos. Chegar ao seu desfecho é como se prostrar em frente á uma encruzilhada, saiu-se de um ponto de catarse e agora permanecesse em uma atitude de espera, ainda que manifestadamente aliviada, como se vê no olhar repleto de sentimento de liberdade que William Defoe transmite na cena final. Como experiência audiovisual, o filme é sensorialmente genuíno, sobretudo nos desempenhos. Já vi entregas artísticas espetaculares, como por exemplo, a de Isabelle Adjani em “Possessão”, no qual a bela atriz francesa encarna um personagem de múltiplas camadas, todas elas obscuras, sensuais e complexas. No entanto, não consegui encontrar na memória um desempenho que se equiparasse ao de Charlotte Gainsbourg em “Anticristo”.

Atuar significa compreender um papel e então enverga-lo, e muitos interpretes o fazem sem se deixar expor física ou psicologicamente, do qual se sai do trabalho completamente integro. Não é o que acontece com Charlotte. A atriz se expõe de uma maneira homérica, e com uma intensidade que deixa os desempenhos celebrados de Nicole Kidman (Dogville), Björk (Dançando no Escuro) e Emily Watson (Ondas do Destino) vários degraus abaixo. Não é apenas um caso de desequilíbrio, no qual uma nota histérica poderia ser facilmente usada, mas, sobretudo de alienação, corrosão através da dor e incapacidade diante do medo. O medo na visão de Lars Von Trier é tão malévolo e insidioso, quanto necessário, mas nem todos reagem de maneira lógica diante dele.

Os três mendigos em “Anticristo” é uma constelação inexistente, onde, na mente da personagem Ela (Gainsbourg) circulam estes sentimentos atávicos sobre a essência simbólica feminina, e que estão ligados diretamente à perda de seu filho pequeno, que certa noite levanta do berço, sobe na janela do apartamento em que vive e despenca silenciosamente para morte, enquanto a mãe e o pai fazem sexo no banheiro. Ela encontra neste instante de prazer a culpa feroz que resultou no fim trágico da criança e associará este fato a natureza de sua tese relacionada aos genocídios femininos perpetrados na idade média, concluindo que a mulher é o santuário onde tudo que há de maligno no mundo se manifesta e cresce. No instante em que se dá conta disso, Ela enlouquece e procura de todas as maneiras eliminar o marido (William Defoe), um psicanalista que até então vinha tentando salvar a mulher da clausura emocional na qual o luto a havia colocado. Ao que tudo indica, Ela quer mata-lo por enxergar nele o instigador desse mal, no sentido sexual, já que viria dele o despertar do desejo e a semente criadora de toda humanidade.

O inicio de “Anticristo” é linear e muito franco. Nele é apresentado um prólogo criativo, que prossegue com um capitulo intitulado “Sofrimento”. O homem acompanha as tentativas infrutíferas dos médicos de recuperarem a saúde psicológica de sua esposa e decide leva-la para casa, onde retira seus medicamentos e começa a trata-la com exercícios psicanalíticos, que evoluem para uma viagem do casal para uma cabana na floresta que eles chamam de Éden. Referencia mais óbvia impossível, mas é a partir da chegada de ambos no local que o diretor destroça a lógica da narração, tornando a jornada do casal em busca da cura uma viagem de terror psicológico. Em uma cena especial, o homem se depara com um servo em pleno trabalho de parto, que seria a representação figurativa do sofrimento criativo, um momento de plenitude e beleza vital, mas repleto de dor e sangue.

Aparentemente incapaz de sentir física e emocionalmente o que a esposa está sentindo, o homem recebe essas ideias através de sinais, comunicados pelos animais que compõem a constelação dos três mendigos. O primeiro é o servo dando a luz, o segundo a raposa eviscerada que rosna “o caos reina” de maneira moribunda em uma alusão a morte emocional que a mulher enfrenta no capítulo “Dor, e o terceiro é o corvo dentro da toca da raposa, que recusasse a morrer apesar das pedradas que o homem lhe dá temendo que a ave denuncie seu esconderijo, já que ele se enfiou ali para fugir da mulher enraivecida, que perfurou sua perna com uma estaca e nela pregou uma pedra pesadíssima em forma de roda.

Algumas passagens de “Anticristo” são inquestionavelmente pesadas. Não apenas pesadas na força e originalidade com que são filmadas, mas pelo que elas comunicam. Na sequencia em que Charlotte Gainsbourg observa um filhote de pássaro despencar do ninho sobre um formigueiro e então ser levado por uma águia que o devora sem pena, o episódio similar de sua perda retorna com uma voltagem multiplicada. Talvez por ser um filme que busque a sinceridade, “Anticristo” não esconda nada. Não esconde estes três sentimentos que tanto atingem a mulher. Não esconde a nudez e sexualidade que, de tão desesperada, chega a ser bestial (a cena dos braços saindo das raízes da árvore é inesquecível) e não esconde a tortura, a física e a metafórica. 


3 comentários:

  1. O que mais me impressionou em "Anticristo" foi a beleza visual extraída de um tema demasiadamente austero. A sequência inicial, muito agressiva, é absolutamente magistral.

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  2. Muito boa a tua resenha. Você se saiu bem quando, ao invés de voltar às referências, se deteve ao filme, que já grita muita coisa.

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  3. eles não estão fazendo sexo no banheiro no momento quem a criança cai :) .

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