TEOREMA (PIER PAOLO PASOLINI – 1968)

O amor radical e espiritual, que não se restringe á carne é representado nesse filme pela figura de um jovem de olhar profundo. Esse jovem é a cerne de “Teorema”, uma das obras-primas do cineasta italiano Pasolini. É um filme curtíssimo, 90 minutos apenas, mas que pesam como uma eternidade na mente do expectador, pois devora de dentro para fora conceitos predefinidos e nosso entendimento geral sobre o que é a moral familiar, as definições de fidelidade e sexualidade e a essência oca das classes abastadas. Recomenda-se assisti-lo com muita disposição e concentração afiada, pois é um drama de detalhes imperceptíveis e de muitos simbolismos, muitos deles indicativos do cinema contestador de Pasolini, que foi censurado em muitos países á época de seu lançamento. “Teorema” parece querer atingir principalmente a burguesia, mas a mensagem pode ser generalizada: tira-se a matéria rica, o espaço, e as convenções sociais e o que sobra é a carne.
 
A carne aqui é abordada de forma quase transcendental. Um rapaz que é a definição pura da beleza masculina é acolhido por uma família rica de Milão. E nos dias em que passa hospedado nesta mansão todos os habitantes dali serão seduzidos em algum momento por seu magnetismo silencioso e terão um contato sexual com ele. Para um filme de Pasolini, “Teorema” é até bem casto em mostrar esses encontros. Nenhum deles é vulgar ou simplório em sua exposição. É de uma beleza gloriosa a cena em que o rapaz impede a governanta da casa de respirar o gás de cozinha e depois a leva até o quarto, onde ambos fazem sexo. O ato não é mostrado, mas em cada cena de sedução o erotismo é exposto em alta voltagem, graças ao porte sedutor de Terence Stamp, e a reação diversa dos atores e atrizes que contracenam com ele, especialmente a bela e expressiva Silvana Mangano.
 
A película tem inicio com a apresentação da família, em preto e branco e com apenas a trilha sonora de Enio Morricone ressaltando o dia-a-dia de cada um. Tudo é estranhamente límpido e sem atributos e o a tensão dessa abertura só é quebrada com a entrada em cena do carteiro saltitante, que esbanja uma alegria proletária. A narrativa é lenta, quase pausada, e a fotografia gélida, com tons em cinza e azul escuro. A casa riquíssima e imponente da família parece um mausoléu representativo de torpor frigido de seus habitantes. Quando o jovem anuncia que irá embora, cada habitante terá uma conversa intima com ele, onde irão expor suas convicções após o contato físico que haviam tido. A matriarca da família, uma mulher belíssima, mas envolta em um falso requinte e uma equivocada sensação de felicidade expõe a paixão avassaladora que lhe atinge após o sexo com o rapaz, bem como o marido, e o casal de filhos, que sofrem transformações psicológicas severas.
 
O pai, dono de uma fabrica e de uma postura sempre superior, tanto física quanto moralmente, certa manhã acorda mais cedo e anda pelo jardim, quando têm a visão iluminada pelo sol nascente. A partir daquele instante nem ele, nem o mundo que ele conhece será o mesmo. Quando para diante da porta aberta do quarto do filho e o vê deitado ao lado de outro homem, seu rosto é atravessado por um sorriso quase impossível de ser percebido, é um milésimo de segundo no qual possivelmente ele está questionando o significado do que vê. Quando volta para sua cama e tenta transar com a esposa, o homem falha e então cai doente por vários dias. A cena seguinte é poética, como o transe de um personagem envolto em sonhos: a filha está observando o pai, sentada na beira da cama, e o rapaz entra e apoia ambas as pernas do doente em seus ombros. É uma transcrição sexualmente mordaz da fragilidade dessas pessoas, mas em nenhum momento os personagens tiram a roupa ou fazem qualquer gesto impróprio. O máximo que se exprime é um muito discreto “obrigado” por parte do pai.
 
A governanta, vivida por uma atriz que se expressa de maneira completa apenas com o olhar e que durante o filme todo mal abre a boca para travar qualquer dialogo, volta para a aldeia onde morava e é recebida por toda a vizinhança como uma entidade glorificada, quase santificável em sua postura. Ela permanece sentada em um banco olhando para o vazio, atravessa os dias operando milagres nos moradores locais. Seu estado é preocupante, já que ela recusa-se a comer, querendo alimentar-se apenas de urtigas. Em certo ponto ela chega até a levitar, gerando comoção em todos que a observam. Em Milão, a jovem filha do casal burguês perambula pela propriedade em busca de uma direção no vazio em que foi colocada após a partida do jovem que a possuiu, e que representou seu primeiro contato sexual. Um contato algo divino, diga-se, e que a deixou a beira da estagnação mental. Certa tarde ela deita-se na cama, fecha as mãos em um aperto profundo e assim permanece por dias a fio, até que enfermeiros de uma clínica psiquiátrica a levam para ser internada, já que o medico que a examinou diz que nada pode fazer pelo estado dela.
 
O filho questiona sua própria existência presente, incompatível com a pessoa social que era, quando vivia rodeado de amigos que o exaltavam. Agora ele vira o espelho para dentro de si e encontra apenas confusão e dor. A burguesia está mudando, transformando-se em algo que transpassa a fronteira do poder, e resume-se na figura impotente dessa família, que vai se demolindo diante da necessidade de sentido. Pasolini faz um filme de essência caótica, apesar de discreto na execução e atinge uma veia exposta, que sangra no decorrer daqueles 90 minutos. É doloroso, mas nem por isso menos bonito.

Um comentário:

  1. Assisti ao filme ontem. Cada personagem da família parece "evoluir" em direção a uma via. O pai abandona a fábrica e sua posição de patriarca; a mãe busca o sexo como forma de redenção; o filho, a arte; a filha parece transcender a um outro mundo, não racional; e a empregada caminha em direção ao mágico, ou religioso. Todos têm em comum a ruptura com a família burguesa, repressora e aprisionadora. Os caminhos de cada um estão longe de alcançar a redenção, mas sim uma mistura de desassossego e sofrimento.

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