Que dificuldade
para resumir “Satyricon” em uma mera resenha. Que filme terrivelmente lindo e
que beleza brutal. Não são poucas cenas em que podia jurar estar sentido o
cheiro e o gosto da comida aos meus olhos intragável, quando da barriga aberta
violentamente de um suíno mal cozido os serviçais de Trimalquião tiram vísceras
quase cruas e distribuem aos convidados já empanturrados de alimentos e
bebidas. Senti-me lançado em uma espécie de hipnose lúgubre, um encantamento perturbador
que me levou a pesadelos caóticos durante dias, mas não consegui ficar
indiferente. Tanto que antes de terminar de assistir o filme pela primeira já
sabia que o assistiria inúmeras vezes mais.
Adaptação da obra
de Petrônio, o “Satyricon” de Fellini é de uma puerilidade desconcertante em
cenas mágicas que funcionam como teatro de costumes da vida em estado latente
de decadência. Roma oferecia prazeres que representavam sua própria involução,
onde o espetáculo circense era também arena de sangue, e onde os prostíbulos
eram lugares de denominação urbana, o ponto de encontro da população em geral e
onde os romanos manifestavam seu apreço pela diversão barata. A verdade
aterradora a respeito de “Satyricon” é que a natureza intragável dessa
civilização espelha características irredutivelmente atuais também na
modernidade. Nada mais presente que a violência enlatada e estilizada das
produções televisivas.
Protagonizado por
um jovem romano chamado Encolpio, que começa o filme lamentando a perda do
amante Gitão para o amigo com quem divide a casa, o cínico e irreverente
Ascilto, “Satyricon” apresenta sua tapeçaria ora bizarra, ora fascinante de
personagens em cenários lúgubres, que emanam insalubridade e escuridão. Soa
como um teatro grego de proporções homéricas, em que a moral é fio tênue na
convivência entre os homens, e a frase de Ascilto, saindo das sombras vaporosas
de uma casa de banho demonstra o quanto estes homens vivem de caminhar nessa
corda bamba que é a convivência em sociedade. O expectador é obrigado a encarar
a verdade constrangedora que sai da boca de Ascilto, que diz “a amizade só pode
durar enquanto for conveniente” e então ver estes seres que compartilham também
a Roma pelo qual somos tragados se diminuírem diante dos esquemas meio
violentos do destino.
Roma está se
deteriorando, e não apenas metaforicamente. Assim que perde novamente para o
amigo, o amante que havia acabado de resgatar, Encolpio pensa em suicídio e é
devolvido da ideia por um tremor de terra que traga o prédio em que ele vive,
incluindo boa parte de seus moradores. Encolpio então encontrará um poeta e ai
se verá diante de alguém que compartilha um sentimento de perda similar ao seu,
mas diferente na natureza. Encolpius lamenta a perda de um amor, e o poeta a
perda da sensibilidade artística, da valorização de tudo aquilo que um dia
impulsionou a criatividade humana. Hoje, diz o poeta Emolpus, tira-se tudo da
terra, o que se precisa para se erguer riquezas materiais e para aqueles que
transbordam poder e arrogância a arte, a poética inclusive, é enxergada como frivolidade
ilustrativa e termina perdendo seu valor na boca de diletantes como Trimalquião,
um aristocrata que patrocina um bacanal no campo e depois um banquete em sua
casa.
Trimalquião é o
resumo da encruzilhada em que Roma se colocou a certa altura de sua existência.
Aquela em que seus lideres estavam tão embevecidos com o entretenimento oco que
seu poder desencadeava que se esqueceu de estabelecer um centro moral e
qualificável para esse poder. Passou-se então de centro do mundo antigo para o
centro da decadência do homem antigo, passando por erros de julgamento e
derrocadas irreversíveis para o Império. Os romanos que não delimitam seu poder
se tornam peças vulgares e patéticas desse centro, chegando até a atravessar o
ponto que eles acreditam torna-los meros mortais, encenando o próprio velório e
tirando daí conclusões também estas pueris.
A decadência também
passa a se fazer na jornada com traços surreais de Encolpio, que convencido por
Ascilto e um mercenário rapta uma criança hermafrodita que era tida como um
deus capaz de reunir pequenas multidões para venera-lo, em busca de bênçãos e
milagres. Ao fugir com a criança que tem uma saúde muito frágil, pelo deserto,
o trio de ladrões terá de lidar com o triste fato de não terem aonde ir, e de
verem aquele ser tão especial e frágil morrer por causa do egoísmo deles. É uma
sequencia extremamente difícil e que, sem nenhum apelo dramático, consegue
instaurar um amargor no expectador desavisado. A viagem de Encolpio é então,
não apenas figurativa, mas real, já que os perigos que ele encara não são
pequenos e todos parecem respostas para suas atitudes humanas e insensatas – e
inclui-se ai o amor pelo rapaz andrógino que ele divide sexualmente com
Ascilto.
Fellini parece
focar especialmente nesse lado fragilíssimo do homem, ao guiar essas peripécias
em uma explosão de cores e cenários que contrastam violentamente e uma
cacofonia de sons que colocam qualquer humor em alerta, como os gritos
polifônicos emitidos por uma multidão sedenta de sangue, ou o vento incidente
que fustiga a planície desértica no qual Encolpio é obrigado a fecundar uma
mulher. Deslumbrante e repleto de fábulas que cortam a narrativa para então
colorir a história, “Satyricon” é uma pérola do cinema, um filme que é mordaz,
mas que nunca chega a ser gratuito, que é até certo ponto romântico, mas que
nunca perde de vista seu objetivo principal, que é ridicularizar a
incongruência trágica do comportamento humano.
Parei de ler na parte das vísceras mal cozidas... da barriga do porco saiam várias iguarias, aves cozidas, peixes, linguiças... ele não estava mal cozido, o anfitrião fez uma brincadeira com os convidados... sugiro ver essa parte de novo
ResponderExcluirGostei da crítica. O filme me lembrou "Jardim das delícias", de Bosch. Ambas as obras falam de tempos em crises e a diluição de suas fronteiras. A fragmentação dos significantes presentes no filme é simplesmente genial.
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