Observação: é raro encontrar um filme hoje em dia, voltado para o
publico infantil que não caia na zona da comercialização gratuita. Tais filmes
ficaram em um passado recente, coisa de quinze, vinte anos atrás. “O Jardim
Secreto” é simbólico dessa safra. O assisti muito na infância e sempre me
pareceu o tipo de produção oportuna para os anos 2000, uma época que grita por
uma obra cinematográfica que mescle dois polos da produção cinematográfica.
Qual seja: o entretenimento através das boas ideias. Este drama, baseado no
livro de Frances Hodgson Burnett é um filme de arte, com visual inglês e que
lembra muito os filmes de época feitos pela dupla Merchant & Ivory
(respectivamente produtor e diretor), e também é um exemplar monumental de
cinema voltado para o publico jovem. Tem delicadeza suficiente para ser
lembrado e uma agilidade sutil, que convém á atmosfera juvenil.
Na Índia, a pequena Mary Lennox (Kate Marbely) de dez anos têm uma vida
inquieta, apesar de repleta de conforto. Embora tenha nascido na Índia, sua
descendência é inglesa. Seu pai é um militar a serviço do Império Britânico e
que, quando não está trabalhando, dedica atenção total a mãe da menina, uma
mulher bela e jovem, que só pensa nas festas glamourosas promovidas pela corte
na colônia. O casal parece ter se esquecido da menina no instante em que está
nasceu, pois todo o cuidado para com ela é desempenhado por suas babás, mais
conhecidas como Ayas. Mary têm solidão no olhar, e amargura na exposição de sua
condição privilegiada, mas cercada de insensibilidade. Tudo piora quando seus
pais morrem em um terrível terremoto, que devasta toda a cidade. Mary nunca
poderá compartilhar do carinho deles, e muito menos ter uma família plena. O
choque é tanto que a menina nem reage ao escárnio dos outros órfãos dessa
tragédia, quando desembarcam no porto da Inglaterra. Ela permanece impassível e
nenhuma emoção, a não ser o cansaço e a raiva, atravessa seu olhar.
Quando as outras crianças órfãs são levadas por algum guardião e Mary é
esquecida no porto, ela pouco parece se perturbar, e ali permanece até tarde da
noite, quando enfim a governanta da casa de seu tio, a severa Mrs. Medlock (na
atuação louvável da legendaria Maggie Smith) aparece para leva-la. O tio da
menina mora em uma propriedade rural gigantesca, com centenas de acres e uma
mansão imponente que parece congelada em um passado trágico. Os cômodos estão
praticamente todos vazios, e a não ser pela presença dos funcionários que ali
trabalham tudo emana uma atmosfera de abandono. Mary estranha o lugar tanto
quanto estranhava sua terra natal, com o agravante de que ali ela não será
eternamente uma princesa esperando que a Aya venha servi-la.
Em suas andanças pelo corredor da enorme casa, Mary entra sem querer no
quarto de seu primo, um menino que todos acreditam estar à beira da morte desde
que nasceu, mas que já está com dez anos de idade, e de cuja existência Mary
não fazia nem ideia. O nome do menino é Colin (Heydon Prowse), e sua mãe foi
irmã gêmea da falecida mãe de Mary. Colin é sempre mantido trancado no próprio
quarto, com as janelas lacradas e deitado sob os cobertores. Foi tão protegido
e considerado tão doente que nem andar aprendeu e é tratado de maneira radical
por Mrs. Medlock, que o trata com um cuidado absurdo. Seu pai sempre recusou
vê-lo, pois Colin é o ultimo elo que ele possui com a falecida esposa, uma
mulher que amou de maneira completa e cuja morte o emparedou em uma solidão
salaz. Quando se sente oprimido pelo vazio da casa, o homem parte em viagem,
demorando meses para retornar.
Como não há muito a se fazer na mansão, Mary vai explorar a propriedade
e descobre de maneira sublime um jardim escondido entre os muros que cercam as
terras de seu tio. O jardim está abandonado já há muitos anos, com todas suas
plantas secas e suas folhagens emaranhadas, mas Mary enxerga ali a oportunidade
de ressuscitá-lo. A garota afinal encontra algo que precisa dela e para o qual
ela pode dedicar toda a paixão e necessidade de afeição que trás dentro de si.
Enquanto tiver o jardim, Mary terá um lugar no mundo para chamar de lar, mesmo
que de maneira figurativa. A morte da mãe de Colin está diretamente ligada a
historia do jardim encontrado por Mary. Ali ela viveu os melhores momentos de
seu casamento e celebrou sua gravidez. Foi ali também que ela encarou a queda
que a levou a morte
Junto com Dickon (Andrew Knott), filho de um dos empregados da mansão, e
que é um menino que lida como ninguém com a natureza, Mary reestruturará não
somente o jardim, mas a vida de todos que moram na casa de seu tio. A mudança
mais radical, porém, se opera dentro dela, que ao viver naquele éden infantil e
auxiliar na recuperação física do primo e mais tarde ajudar a reerguer psicologicamente
o tio irá se desvencilhar da amargura que trazia dentro de si e abraçar aquela
que é a metáfora mais bela e obvia de “O Jardim Secreto”, a da lagarta que se
livrou do casulo da amargura e desabrochou para um mundo completamente melhor e
novo.