Constatação
primeira ao assistir a este trabalho imprescindível de Roman Polanski é de que
filmes bons não precisam de nada além de um roteiro original e de um elenco que
valorize esse material. É lamentável ver o cinema indo por caminhos apelativos
e gratuitos. Felizmente sobreviverão artistas zelosos como Polanski, e talvez
outros nasçam salvando o público conceitual da acalentadora e falsa ideia de
segurança. Hoje o cinema é feito para tudo, menos para fazer a plateia pensar e
tudo o que a plateia menos quer é ver seu reflexo no espelho esclarecedor de
uma tela de cinema. A despeito da conduta pessoal do homem Polanski – sobre a
qual eu tenho opinião formada, mas que nada tem haver com sua obra
cinematográfica – a força do Polanski cineasta permanece intocada e até
evoluiu, transformada em filmes que acredito serem obrigatórios, como os
recentes “O Escritor Fantasma” e este “O Deus da Carnificina”, adaptação de uma
obra teatral de peso da francesa Yasmina Reza, cujo texto já fora levado á
Broadway em ocasiões distintas.
Trata-se de uma
situação caseira, mostrada corriqueiramente na abertura do filme, quando um
grupo de meninos pré-adolescentes estão reunidos em um parque do Brooklin, em
Nova Iorque e dois deles começam uma discussão, que progride para empurrões e
termina com um deles acertando o outro no rosto com um galho. Michael (John C.
Reilly, de Chicago) e Penélope (Jodie Foster), os pais do menino que foi
atingido pelo galho decidem convidar os pais do menino agressor para uma
conversa sobre o ocorrido, para que se esclareça quais limites devem se impor á
uma situação que encontra-se entre a violência gratuita e a imaturidade
juvenil. Nos dez segundos em que esses quatro personagens aparecem juntos já se
sabe que cada um tem uma opinião definida, e que todas elas colidem. Mas
obviamente a educação primeira e a polidez exige que essas convenções sociais
estejam sempre a frente do real motivo do encontro. Allan (Cristoph Waltz) é um
advogado requisitado, cuja postura passa perto do arrogante, mas graças a
envergadura do ator que o encarna, não se atém somente a essa característica,
sendo ele próprio um contraste instigante para a figura composta, requintada e
algo nervosa de sua esposa Nancy (Kate Winslet).
“Deus da
Carnificina” têm, o que acredito ser os mais bem construídos personagens de
causa e efeito que jamais encontrei em um filme. E eles são belamente
compreendidos e conduzidos pelo texto repleto de sabor, justamente por que
dessa situação corriqueira nascem outras nem tanto simplistas assim. Dá
agressão que um dos meninos inflige ao outro surge questionamentos que inflam
de vigor e murcham em veracidade. O que sobra é a desconstrução de uma
civilidade imposta pela evolução natural do homem, em prol do desenvolvimento
de seus impérios e um retorno á barbárie do primitivismo. A principio, a
própria reunião em si acaba deixando de ter sentido e seus próprios
protagonistas procuram afastar-se dela utilizando recursos repletos de falsas
desculpas, e quando não acham outra saída a não ser confrontar-se
dialeticamente até o corpo desses personagens apresentam uma reação física
extremada: Nancy vomita compulsivamente sobre a mesinha da sala de estar de
seus anfitriões e Penélope inicia um choro infantil, quando não vê seus ideais
politizados serem levados em conta pelo grupo.
É drama puro, mas
só se consegue rir em “Deus da Carnificina”, pois as falácias apresentadas nele
são todas muito próprias do ser humano moderno. Quando se percebe que não é
mais conveniente ser educado e que o melhor remédio é a verdade o que se têm é
um episódio de tortura coletiva e psicológica. Estes casais nunca chegam a se
edificar em seus comentários e a intensidade de seus diálogos é análoga a
puerilidade que os vitima, chegando ao ponto de todos terem que se alcoolizar para
suportar a saraivada indigesta de acusações, objeções e criticas que uns
dirigem contra os outros, sendo que até individualmente cada casal enxerga sua
própria crise. Penélope se recente de ser uma pessoa justa e modernista em
contrapartida do marido medíocre na atitude e no pensamento e Nancy desgosta o
marido ausente que vive para o emprego e que ao seu modo é tão simplista quanto
o companheiro da outra. Curiosamente são as mulheres que inflamam a discussão,
sempre trazendo à tona a busca por um culpado a ser punido. São elas que
respondem pelos momentos mais intensos, em que estão expostas totalmente a
brutalidade verbal de seus cônjuges, em que se percebem sozinhas na defesa de
suas opiniões e principalmente de seus filhos. Penélope nunca deixa de lembrar
as sequelas físicas do seu e Nancy sempre se coloca a frente de Allan para
explanar que a atitude do seu não foi uma mera manifestação de violência.
“Deus da
Carnificina” dura o suficiente para deixar o espectador catatônico. Primeiro
por que fecha a ferida com uma finalização perfeita, passando do vergonhoso
para o construtivo em um corte de cena expressivo e divertidíssimo que resume
tudo quase como um truque debochado de mágica. E segundo por que deixa aqueles
personagens envoltos naquela uma hora deliciosa de luta humana que afinal tão
cedo não será finalizada, mas que aqui mereceu um desfecho dos melhores, que
foi como uma galhada nada carinhosa na hipocrisia.
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