DEUS DA CARNIFICINA (CARNAGE – ROMAN POLANSKI/2011)


Constatação primeira ao assistir a este trabalho imprescindível de Roman Polanski é de que filmes bons não precisam de nada além de um roteiro original e de um elenco que valorize esse material. É lamentável ver o cinema indo por caminhos apelativos e gratuitos. Felizmente sobreviverão artistas zelosos como Polanski, e talvez outros nasçam salvando o público conceitual da acalentadora e falsa ideia de segurança. Hoje o cinema é feito para tudo, menos para fazer a plateia pensar e tudo o que a plateia menos quer é ver seu reflexo no espelho esclarecedor de uma tela de cinema. A despeito da conduta pessoal do homem Polanski – sobre a qual eu tenho opinião formada, mas que nada tem haver com sua obra cinematográfica – a força do Polanski cineasta permanece intocada e até evoluiu, transformada em filmes que acredito serem obrigatórios, como os recentes “O Escritor Fantasma” e este “O Deus da Carnificina”, adaptação de uma obra teatral de peso da francesa Yasmina Reza, cujo texto já fora levado á Broadway em ocasiões distintas.

Trata-se de uma situação caseira, mostrada corriqueiramente na abertura do filme, quando um grupo de meninos pré-adolescentes estão reunidos em um parque do Brooklin, em Nova Iorque e dois deles começam uma discussão, que progride para empurrões e termina com um deles acertando o outro no rosto com um galho. Michael (John C. Reilly, de Chicago) e Penélope (Jodie Foster), os pais do menino que foi atingido pelo galho decidem convidar os pais do menino agressor para uma conversa sobre o ocorrido, para que se esclareça quais limites devem se impor á uma situação que encontra-se entre a violência gratuita e a imaturidade juvenil. Nos dez segundos em que esses quatro personagens aparecem juntos já se sabe que cada um tem uma opinião definida, e que todas elas colidem. Mas obviamente a educação primeira e a polidez exige que essas convenções sociais estejam sempre a frente do real motivo do encontro. Allan (Cristoph Waltz) é um advogado requisitado, cuja postura passa perto do arrogante, mas graças a envergadura do ator que o encarna, não se atém somente a essa característica, sendo ele próprio um contraste instigante para a figura composta, requintada e algo nervosa de sua esposa Nancy (Kate Winslet).

“Deus da Carnificina” têm, o que acredito ser os mais bem construídos personagens de causa e efeito que jamais encontrei em um filme. E eles são belamente compreendidos e conduzidos pelo texto repleto de sabor, justamente por que dessa situação corriqueira nascem outras nem tanto simplistas assim. Dá agressão que um dos meninos inflige ao outro surge questionamentos que inflam de vigor e murcham em veracidade. O que sobra é a desconstrução de uma civilidade imposta pela evolução natural do homem, em prol do desenvolvimento de seus impérios e um retorno á barbárie do primitivismo. A principio, a própria reunião em si acaba deixando de ter sentido e seus próprios protagonistas procuram afastar-se dela utilizando recursos repletos de falsas desculpas, e quando não acham outra saída a não ser confrontar-se dialeticamente até o corpo desses personagens apresentam uma reação física extremada: Nancy vomita compulsivamente sobre a mesinha da sala de estar de seus anfitriões e Penélope inicia um choro infantil, quando não vê seus ideais politizados serem levados em conta pelo grupo.

É drama puro, mas só se consegue rir em “Deus da Carnificina”, pois as falácias apresentadas nele são todas muito próprias do ser humano moderno. Quando se percebe que não é mais conveniente ser educado e que o melhor remédio é a verdade o que se têm é um episódio de tortura coletiva e psicológica. Estes casais nunca chegam a se edificar em seus comentários e a intensidade de seus diálogos é análoga a puerilidade que os vitima, chegando ao ponto de todos terem que se alcoolizar para suportar a saraivada indigesta de acusações, objeções e criticas que uns dirigem contra os outros, sendo que até individualmente cada casal enxerga sua própria crise. Penélope se recente de ser uma pessoa justa e modernista em contrapartida do marido medíocre na atitude e no pensamento e Nancy desgosta o marido ausente que vive para o emprego e que ao seu modo é tão simplista quanto o companheiro da outra. Curiosamente são as mulheres que inflamam a discussão, sempre trazendo à tona a busca por um culpado a ser punido. São elas que respondem pelos momentos mais intensos, em que estão expostas totalmente a brutalidade verbal de seus cônjuges, em que se percebem sozinhas na defesa de suas opiniões e principalmente de seus filhos. Penélope nunca deixa de lembrar as sequelas físicas do seu e Nancy sempre se coloca a frente de Allan para explanar que a atitude do seu não foi uma mera manifestação de violência.

“Deus da Carnificina” dura o suficiente para deixar o espectador catatônico. Primeiro por que fecha a ferida com uma finalização perfeita, passando do vergonhoso para o construtivo em um corte de cena expressivo e divertidíssimo que resume tudo quase como um truque debochado de mágica. E segundo por que deixa aqueles personagens envoltos naquela uma hora deliciosa de luta humana que afinal tão cedo não será finalizada, mas que aqui mereceu um desfecho dos melhores, que foi como uma galhada nada carinhosa na hipocrisia.
 


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