O menino já tem idade suficiente para ir ao banheiro sozinho, mas ainda usa fraldas, as quais a mãe se vê a obrigada a trocar sempre que o garoto faz suas necessidades fisiológicas. Em um arroubo de irritação a mãe joga o menino no chão e este quebra o braço, permanecendo com uma cicatriz que sairá cara por toda uma vida. É um jogo angustiante, mas dentro dele delimita-se pela própria criança que a mãe e o pai desempenham funções diferentes e recebem tratamentos diferentes. E a mãe percebe ao longo dos anos, através de detalhes pequenos que seu filho é seu inimigo e com ele trava uma luta silenciosa e ditada pela obrigação impingida, pela culpa e acima de tudo ressentimento. Compreender que o ser que gerou trabalha contra você, em atitudes ora infantis, mas deliberadas, e mais tarde através de ações terrivelmente fatais é de uma angustia inominável. Que tragédia é acompanhar a vida de Eva Katchadourian (Tilda Swinton) e percorrer junto com ela a jornada triste que é a maternidade indesejada.
“Precisamos falar sobre o Kevin” é muito bem dirigido por uma cineasta chamada Lynne Ramsay, adaptado de um romance de Lionel Shriver. Um filme belo, que de outra maneira pode ser descrito como uma obra-prima da dor e do desespero, uma bola de tênis engatada na garganta. Possui uma edição excelente, que embaralha a narrativa, preservando a concisão dos eventos e explicando com sutileza como Eva tinha uma vida realizada pessoal e profissionalmente antes de engravidar do marido Franklin (John C Reily). Os dois se conhecem em um festival na frança, onde pessoas do mundo todo lançam-se em uma guerra de tomates e saem cobertas da cabeça aos pés de vermelho. É uma abertura sem igual em um filme que fala de um adolescente que perpetra uma chacina no colégio em que estuda.
Lynne Ramsay cuida de estudar calmamente quem é Kevin na visão de sua mãe Eva. Ainda grávida ela parece execrar a gestação, demonstrando obvio desconforto com a barriga e uma vontade de impedir o nascimento, no difícil instante do parto. Dar a luz a esse ser que sempre considerou um desvio na vida plena que possuía é para Eva algo antinatural e, portanto, doloroso em dobro. Kevin permanece um desconhecido para Eva por boa parte da infância deste, e Eva é para Kevin uma entidade enigmática, que ele jamais conseguirá entender e passa desde cedo a confrontar. Para a mãe ele é uma parede indecifrável, e Eva nunca percebe que o filho é seu exato reflexo: brilhante, audacioso e um mistério. Em meio a desafios impostos para chamar a atenção, Kevin é todo abstração e medo, e provoca sensações exatamente iguais em Eva, que é rechaçada por ele. E daí vão se dividindo os papéis quando, na hora da doença ela é o colo necessário e o pai a figura intrusa e incomoda. O conforto do útero. É igualmente tenso perceber que o massacre orquestrado pelo garoto recebeu inspiração justamente neste instante de fragilidade, quando a mãe lê para ele uma história infantil.
Kevin possui uma rebeldia silenciosa, daquelas sorrateiras e muito irritantes, sempre emanando egoísmo, gestos calculados para enervar seu interlocutor. Seu olhar transmite enfado e indiferença. Ele é indiferente aos esforços de Eva, é indiferente á irmã, e atravessa o filme encarnando um enfrentamento calado, e que só o rosto emoldurado de antipatia do soberbo Ezra Miller pode transmitir em perfeição. É um jovem que se expõem de todas as formas, mas continua não se revelando na essência. É retumbante e certeira à frase que com que ele retruca o anuncio do divorcio dos pais: “Eu sou o contexto”. “Precisamos falar sobre o Kevin” exige cuidado do expectador, pois as emoções nele apresentadas são muito discretamente vividas por seus atores e por isso mesmo ecoam por toda a estrutura do filme. Não é uma história fácil, e necessita de um tanto de concentração, mas oferece em troca um retrato embasado da relação intricada entre uma mãe e um filho.
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