Há fatos e fatos. Alguns fatos buscam assomar á realidade uma
compreensão humana, histórica e nacional, e outros que servem para encobrir
verdades. “Katyn”, do extraordinário diretor polonês Andrezj Wajda, trata de
uma farsa histórica imposta com brutalidade sobre uma nação acuada no beco
obscuro da Segunda Guerra. É uma produção que guarda certa beleza, mas da qual
se sai modificado, justamente pela habilidade de Wajda de expor a carne ferida
do orgulho polonês, coagido com selvageria a encarar uma mentira e então
revestir-se de resignação por décadas. É de uma coragem sem precedentes que um
diretor reconstituía um episodio tão duro e vergonhoso da história mundial sem
cobrir de panos quentes seus detalhes mais sangrentos e atrozes.
Na Segunda Guerra, o território polonês se encontrava entrincheirado entre
as inimigas Alemanha e União Soviética. Nessa encruzilhada geográfica, o país
não tinha como recuar ou seguir adianta. Da invasão soviética em 17 de setembro
de 1939, a já incisiva ocupação Alemã, os cidadãos poloneses se viam em uma
situação de perplexidade e confusão. Na abertura do filme, a população de
Cracóvia atravessa uma ponte na qual, do lado oposto algumas pessoas já
retornam, fugindo dos russos. Essa população está indefesa, já que o exercito
foi rendido e os soldados entregues aos Alemães ou dispersados, ficando, porém
centenas de oficiais superiores aprisionados pelos soviéticos, com a evidente
intenção de quebrar a espinha da defesa nacional polonesa e evitar uma
insurreição.
A procura do marido oficial, a bela Anna (Maja
Ostaszewska) o encontra em
uma estação, onde estes homens aguardam uma possível transferência para
território russo. Na estação, Andrezj, o marido de Anna, observa cada detalhe
da situação e a anota em um pequeno caderno. No reencontro com a esposa, deixa
claro seu compromisso com o dever militar, ainda que seja patente seu amor pela
família. Quando o pelotão de oficiais é levado pelos soviéticos em um trem e a
pequena filha de Andrezj observa na estação, gritando pelo pai nota-se tão
somente o desamparo de toda a Polônia, que é atingida em igual proporção no
âmbito cultural, quando suas universidades são fechadas e grande parte de seus
intelectuais presos e assassinados. Wajda é tão pontual ao retratar essa
desestruturação que o filme todo transpira o sentimento de impotência que se
abateu sobre os homens e mulheres daquele país. Na cena humilhante em que os
professores e diretores de uma instituição são levados a força pelos Alemães
tem-se a sensação pungente de revolta, ao ver livres pensadores e homens
criadores do progresso sendo reprimidos.
Por vezes é difícil identificar em “Katyn” quem é o poder no comando,
tanto alemães quanto soviéticos parecem pertencer ao mesmo grupo que visa
eliminar a identidade nacional polonesa e dessas tentativas advêm dramas que
são ora amplos em escala, ora pessoais com a encenação de entrechos
específicos, que seguem a história de alguns oficiais. São eles que definiram a
linha sombria no episódio que dá titulo ao filme: em 1940 esses oficiais, em
sua maioria cientistas ou engenheiros de profissão, foram fuzilados na floresta
de Katyn e enterrados em covas comuns a mando do governo de Stalin. Quando
estas covas foram descobertas passaram a ser utilizadas pelos alemães como
política antissoviética e ao fim da Segunda Guerra, com a derrota da Alemanha,
o mesmo massacre passou a ser propagado pelos soviéticos como atribuição do
governo nazista. É essa mentira, portanto, que os poloneses são obrigados a
encarnar, correndo sempre o perigo de serem também eles torturados, exilados ou
mortos, caso dissessem o contrario.
Não é o caso de os fatos serem contraditórios ou imprecisos. Da
descoberta das covas, ao método bolchevique de execução, até a quantidade de
dados e evidências recolhidos do massacre, o destino desses prisioneiros de
guerra foi tão indigno quanto precário e é um golpe terrível uma nação ter que
se reerguer sob a égide da farsa. Em uma das sequencias de força, a irmã de um
oficial vende parte de seu belo cabelo loiro para pagar uma lápide para o irmão
assassinado em Katyn. Na pedra, está gravada parte da verdade e a moça,
recusando-se a permitir que a morte de seu irmão seja tratada tão
arbitrariamente é levada para interrogatório, de onde é parte para um destino
incerto, mas possivelmente irreversível. O mesmo se pode dizer da cena em que o
sobrinho de Anna vai se matricular na faculdade e do seu currículo consta o
fato de seu pai ter sido uma vitima de Katyn. No papel está à verdade, uma
verdade que os administradores do lugar pedem educadamente que ele releve para
evitar problemas com os dirigentes soviéticos. Ao sair dali, o rapaz rasga um
cartaz de propaganda soviética e as consequências de seu ato são
retumbantes.
Andrezj Wajda é um desses diretores que recusam o cinema como palco
apenas de espetáculos e seu filme é tão necessário quanto chocante, já que
serve também como processo de renovação da identidade nacional de sua pátria.
Wajda foi atingido de maneira muito próxima por essa tragédia, ao ter o pai
entre uma das vítimas de Katyn, e a recriação que ele faz dói mesmo.
Principalmente nos dez minutos finais, quando o horror daquilo tudo é mostrado
pelos olhos desesperados desses homens, aprisionados e jogados em valas, para
terem sua vida e consciência enterrada lado a lado, como se com isso, seus
assassinos quisessem sepultar de uma vez só uma ameaça que nunca chegou a se
concretizar, e talvez nem viesse a concretizar-se.
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