Na época de seu lançamento nos cinemas, e agora, muitos anos depois, “Cidade dos Sonhos” continua um filme ultra-cult e que todo mundo acredita valer a pena ser discutido e deslindado. Minha impressão é de que, sim David Lynch é de fato um diretor genial. Mas por quê? Porque ele conhece sua máquina de trabalho. Conhece de cinema, e também de indústria. Tanto, que fez um filme com um roteiro simples e básico se transformar no enigma de uma geração. Lynch sabia que, ao mexer tal pauzinho, filmar tal cena de um jeito e fazer um enquadramento de câmera inexplicável ele colocaria o cérebro de seu expectador para trabalhar. E o resultado foi até engraçado de se ver: dezenas e dezenas de críticos de cinema, jornalistas e blogueiros (incluindo-se aqui mais um), tentando explicar, em textos longos, o que era “Cidade dos Sonhos” e o significado de seus símbolos.
O filme inicia com uma porção de jovens casais dançando ao som daquelas músicas cheias de ritmo e ginga dos anos 60, sobre um fundo rosa que depois se ilumina, mostrando o rosto sorridente de sua protagonista, Betty (Naomi Watts). Corta para a trilha-sonora minimalista e soturna de Ângelo Badalamenti; uma moça apreensiva é conduzida em uma limusine e depois ameaçada sobre a mira de um revolver. Acontece de o veiculo ser atingido por outro carro e a moça – uma morena linda vivida por Laura Harring – sobreviver, sair cambaleando pelos arbustos rumo a Cidade dos Anjos, Los Angeles, e encontrar abrigo na casa de uma atriz de meia idade, que acaba de sair dali em uma viagem a trabalho.
Na seqüência, desembarcando no ensolarado aeroporto da cidade, Betty surge, transbordando de alegria e de anseios pela vida que espera ter ali. A loira simpaticíssima e muito comunicativa quer ser uma reconhecida atriz de cinema, e chega mesmo a dar um passo adiante nos testes que faz, demonstrando que de fato possui jeito para essa profissão. No entanto, no momento em que chega a casa da tia, a atriz de meia-idade que acabou de viajar, se depara com a morena acidentada, que está mais perdida que barata em dia de dedetização. A mulher não lembra o próprio nome, e na falta de um acaba roubando o de Rita Hayworth, ao ver um cartaz do celebre Gilda.
As duas mulheres resolvem se auxiliar na busca de uma identidade para a amnésica, e enquanto isso ocorre, na sub-trama, um diretor de cinema se vê as turras com a máfia, que quer empurrar uma qualquer para o papel principal de seu filme. O mesmo é Adam Kesher (Justin Theroux), que ao voltar do trabalho, após barbarizar o carro dos homens que lhe frustraram os planos encontra a mulher na cama com o sujeito que limpa a piscina. A moça que ele é obrigado a escolher para seu filme é Camilla Rhodes, uma rapariga sem talento aparente.
Betty e “Rita” mais tarde se envolvem sexualmente no ápice de suas emoções. No meio dessa relação existe também uma bolsa preta recheada de dinheiro, e uma chave azul sem utilidade visível. Quando decidem seguir o rastro Diane Sewyn, um nome que chega a mente de “Rita”, as mulheres se deparam com um cadáver em decomposição, num quarto escuro e solitário de um apartamento. Quem é aquela mulher morta? Quem é “Rita” afinal?
Essas respostas chegam de repente, e de uma maneira incômoda, quase triste. O expectador percebe que toda aquela trama era uma espécie de sonho, alucinação. A partir dessa revelação, pouco clara para alguns que a assistem, se inicia o estilismo paradoxal de Lynch.
Aquela é uma história de decepção e angustia, e não é muito difícil de ser interpretada. Muitas pessoas quando se frustram com certa situação ou são decepcionadas por alguém passam por períodos de extremo descontrole emocional, exatamente como a real protagonista do filme, que é Diane (também Naomi Watts), uma atriz que não funcionou, que foi abandonada pela amante Camilla Rhodes (também Laura Harring), a quem deve o favor de ganhar pequenas participações em filmes. Diane mora em um apartamento solitário e vive em desespero pela vida que queria para si e que não aconteceu.
A primeira parte desse drama, com todos seus mistérios e simbolismos inexplicáveis, na verdade foi um sonho seu. Quando fica claro que Camilla Rhodes lhe roubou não apenas o coração, mas também uma chance que tinha de brilhar, Diane contrata alguém para matá-la e depois se arrepende de tê-lo feito. Passa a se corroer pelo remorso e pela perda; tem sonhos ruins, sonhos bons, em que tenta mudar aquilo que viveu e tornar tudo uma história mais cinematográfica, feliz.
É a dor e confusão de um ser humano, que, se for analisada ao pé da letra é sempre assim, repleta de símbolos deixados pelo caminho, de coisas que não conseguimos explicar. “Onde eu errei? Qual foi a minha falha?”, “Porque não me amaram como eu amei?”. É um filme que demora a conquistar você, mas em algum momento acaba conquistando. Essa foi minha interpretação dessa obra-prima de David Lynch. Talvez existam outras, bem mais coerentes e estudadas. Mas acredito que cada expectador de “Cidade dos Sonhos” deve ter a sua, pois é um filme de sentidos e de sensações muito pessoais. Assista se puder e tire suas próprias conclusões.
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